Pesquisa Clínica em Oncologia Veterinária
A palavra medicina tem origem no latim “mederi” e significa “escolher o melhor caminho”. Durante muito tempo, as decisões de diagnóstico e tratamento dos pacientes na área da saúde foram baseadas em experiências pessoais, ou seja, no “melhor caminho”. As decisões eram realizadas por autoridades com maiores títulos acadêmicos e a partir das teorias fisiopatológicas disponíveis até o momento. Atualmente, as escolhas de condutas diagnósticas e de tratamento são baseadas em evidências, fruto de pesquisas clínicas, nos permitindo assim escolher um caminho já percorrido anteriormente e nos levando a melhores decisões quanto aos cuidados e a saúde dos pacientes. A pesquisa clínica tem o compromisso com a busca explícita e honesta de evidências científicas da literatura médica proporcionando conceitos confiáveis.
O filósofo da ciência Thomas Kuhn afirma que controvérsias são um ótimo meio de explorar a natureza das coisas, logo, a inquietação frente ao desconhecido (ou inexplicável) somada ao senso de responsabilidade, nos levam à pesquisa, que deve ser promissora, original, impactante e nos permita pensar baseados em dados concretos. A pesquisa clínica deve ter a visão do todo. Deve ter o envolvimento com o assunto, a percepção intuitiva trazida pela experiência, a capacidade de reflexão, o equilíbrio entre ceticismo, pragmatismo e criatividade. É importante lembrar, que a pesquisa deve respeitar um padrão de qualidade ética e científica para a elaboração, condução, monitoria, auditoria, análise, emissão de relatórios e notificações dos estudos clínicos médicos e veterinários que envolvam a participação de indivíduos e animais respectivamente. Esta é considerada a base da boa prática clínica, que temos o dever de respeitar, cumprindo assim, nossa missão como Médicos Veterinários com excelência e deixando exemplos a serem seguidos pelos que vierem depois de nós.
A pesquisa clínica em oncologia veterinária tem como principal objetivo melhorar o tratamento padrão de uma determinada doença oncológica. Além disso, a pesquisa clínica em animais de companhia pode ser realizada como fonte de dados e informações para determinar o delineamento experimental de um estudo clínico humano, sendo que essa área é chamada de oncologia comparativa. Os animais desenvolvem tumores espontaneamente e representam um excelente modelo de estudos para os tumores nas pessoas.
A pesquisa de novas terapias oncológicas exige rigor em todas as etapas de seu desenvolvimento antes de ser disponibilizada no mercado. Muitos fármacos inicialmente desenhados falham em uma das fases do estudo clínico, o que rende enorme prejuízo tanto de recursos financeiros quanto de insumos. Assim, a fim de evitar desperdícios, faz-se necessário modelos que mimetize ao máximo a interação do tumor com o fármaco em estudo, tanto em termos de toxicidade quanto de eficiência.
Antes do planejamento da pesquisa clínica, estudos sobre a eficácia e toxicidade de uma nova molécula ou tratamento devem passar por estudos pré-clínicos. Dentre eles, destaca-se a cultura celular, que é amplamente utilizada desde a década de 60 por apresentar relativo baixo custo, capacidade de replicar resultados e de ser realizada em ambiente controlado. Contudo, embora tenha sido a mais forte entre várias descobertas, sua incapacidade de replicar o ambiente tumoral a torna limitada. Modelos animais, como roedores, também são utilizados por se aproximarem do padrão fisiológico humano, relativo baixo tempo de execução e baixo custo de aplicação. Contudo, embora apresentem um ambiente tumoral mais complexo, a distância genética entre humanos e murinos faz com que uma média de apenas 11% das drogas antineoplásicas de potencial farmacológico sejam aprovadas para uso em humanos. Esta diferença genética torna diferente não apenas o ambiente tumoral como a própria resposta fisiológica à diferentes concentrações e modulações das drogas. Temos como exemplo a elevada capacidade de camundongos de tolerar altas concentrações medicamentosas e a baixa sensitividade medular a toxicidade.
Mesmo não existindo um único modelo que apresente todas as características ideais para o desenvolvimento de terapias humanas, os animais de companhia têm se destacado em muitos quesitos como demonstrado na tabela 1.
TABELA 1 – Comparativo entre modelos experimentais cultura celular, murinos e animais de companhia (cães) em relação às características consideradas ideais para o desenvolvimento de terapias oncológicas para humanos. CLIQUE NA TABELA PARA VISUALIZAR EM PDF.
Ainda que o custo efetivo de desenvolvimento de agentes terapêuticos seja mais elevado e o tempo de pesquisa maior em estudos que utilizem modelos de animais de companhia, a similaridade genética e ambiental com humanos evita equívocos de interpretação e adaptação de informação.
O cão, como modelo para desenvolvimento de novas terapias voltada a seres humanos é baseada em quatro pontos:
1. Menor tempo de curso clínico que os humanos em latência, manifestação clínica e potencial metastático;
2. Menos entraves legais a terapias experimentais e a recoleta de amostras desde que esteja aprovado por um comitê de ética;
3. Compartilhamento de ambiente e, por consequência, mesma exposição a variáveis ambientais;
4. Raças bem definidas com predisposições o que possibilita descobertas de fatores de riscos genéticos e ambientais.
As pesquisas clínicas mais promissoras são baseadas na similaridade de crescimento e metástase de determinados cânceres malignos a exemplo do osteossarcoma. Dados obtidos através de diferentes tecidos tumorais caninos, podem ser depositados ou coletados de órgãos como o Canine Comparative Oncology and Genomics Consortium, estabelecido em 2007 ou o Canine Oncology Research Consortium, órgão da V Foundation.
A pesquisa clínica apresenta 4 fases para sua realização que estão apresentadas abaixo:
Fase 0
Os estudos de fase 0 são aqueles realizados anteriormente aos estudos tradicionais para determinação da dose e da segurança de uma determinada droga. São estudos curtos, nos quais uma pequena dose da droga é administrada aos pacientes, a fim de estabelecer o mecanismo de ação da mesma na espécie em questão. Esse tipo de estudo é reservado às drogas cujo mecanismo de ação já se encontra bastante estabelecido e cujos efeitos colaterais possam ser adequadamente mensurados.
Fase I
Os estudos de fase I têm por objetivo estabelecer a dose máxima tolerada da nova droga, que será utilizada nos estudos subsequentes, bem como a dose limite para o desenvolvimento de toxicidade em grupos de pacientes submetidos ao incremento de dose. Além disso, alguns estudos de fase I envolvendo fármacos de ação específica podem ter como objetivo avaliar a dose biologicamente efetiva, que pode, inclusive, ser superior à dose máxima tolerável do fármaco.
Devido a importância da avaliação de toxicidade, o Instituto Nacional do Câncer (NCI) desenvolveu um Critério Comum de Toxicidade (CTC) para avaliar Eventos Adversos (AE) nas terapias oncológicas em humanos, dividindo em grupos e modalidades, conhecido como Critério de Terminologia da NCI para Eventos Adversos (CTCAE). Na Medicina Veterinária, o Grupo de Oncologia Cooperativa Veterinária (VCOG) desenvolveu um documento para direcionar as pesquisas clínicas com animais domésticos e avaliar, de forma padronizada, os efeitos adversos da terapia antineoplásica e com componentes imunológicos. Esse documento ficou conhecido como (VCOG-CTCAE). Seguindo as orientações deste documento, os grupos de pesquisa conseguem estratificar a intensidade da ocorrência dos efeitos e interromper o tratamento quando a terapia extrapolar a faixa segura.
Na avaliação toxicológica é feita uma escala classificando os efeitos adversos, e separando em categorias baseadas nas estruturas anatômicas e fisiopatológicas. Os efeitos são estratificados ou divididos em graus de 1 a 5, sendo essa uma escala crescente da intensidade de ocorrência. Cada divisão acompanha uma descrição clínica exclusiva da gravidade de cada efeito que é baseada nesta diretriz geral:
Grau 1: efeitos adversos leves;
Grau 2: efeitos adversos moderados;
Grau 3: efeitos adversos graves;
Grau 4: efeitos adverso com risco de vida ou incapacitante;
Grau 5: morte relacionada aos efeitos adversos.
Secundariamente, a fase I permite avaliar os efeitos farmacocinéticos e farmacodinâmicos da droga, desenvolver biomarcadores e, em menor escala, avaliar os benefícios e a resposta clínica ao tratamento. Contudo, a avaliação da eficácia e efetividade do tratamento é comprometida nesta fase, visto que muitos dos pacientes recebem doses mínimas e, geralmente, inferiores à dose terapêutica.
Os objetos de estudo utilizados na Medicina Veterinária são pacientes refratários ao tratamento convencional, cuja doença não possui tratamento convencional estabelecido ou cujos tutores não possuem condições financeiras para arcar com os custos do tratamento convencional.
A dose inicial utilizada na pesquisa considera estudos pré-existentes em outras espécies e é escalonada de acordo com o desenvolvimento de toxicidades, até que se obtenha a dose máxima tolerável. A frequência de monitorização do paciente é baseada na farmacocinética e na farmacodinâmica da droga, sendo mais frequente no início do estudo e reduzida ou espaçada conforme o desenvolvimento de toxicidades.
Fase II
O objetivo da fase II é identificar a atividade clínica ou biológica do composto em questão em um grupo definido de pacientes, utilizando a dose máxima tolerável ou a dose biologicamente efetiva, estabelecidas na fase I, bem como informar a necessidade de instituir um estudo de fase III. Além disso, a fase II pode, de forma secundária, determinar o índice terapêutico do composto, expandir as informações acerca da farmacocinética, farmacodinâmica e toxicidade do mesmo e avaliar a qualidade de vida dos pacientes durante o tratamento.
Os estudos de fase II podem ser subdivididos em estudos de fase IIa e IIb, sendo que os estudos de fase IIa, tradicionalmente realizados, apresentam braço único, não são randomizados ou cegos e carecem de um grupo controle ou utilizam controle histórico, o que, infelizmente, sujeita os mesmos à vieses, como, por exemplo, seleção ou desvio de população. Já os estudos de fase IIb costumam ser controlados, randomizados, cegos e podem envolver múltiplos braços de tratamento, comparando-os entre si e elegendo aquele que será inserido na fase III.
Ensaios clínicos prospectivos e randomizados são considerados padrão ouro para avaliar terapias para o câncer na medicina e tem se mostrado cada vez mais comuns na Medicina Veterinária, por isso é importantíssimo que seja estabelecido uma padronização do procedimento (NGUYEN, 2015). Dessa forma, é possível a confrontação coerente e significativa entre diferentes protocolos de tratamento baseando-se na resposta do paciente, possibilitando a atualização e melhoria contínua nos protocolos de tratamento (VAIL, 2010).
Em 1981 a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a primeira recomendação instituindo uma abordagem padronizada para o registro de dados de pacientes com neoplasmas, com objetivo de analisar a resposta dos mesmos a terapia. A avaliação de resposta em tumores sólidos (RECIST) foi publicada pela primeira vez em 2000 e atualizada em 2009, a fim de simplificar a avaliação da resposta de neoplasma sólidos ao tratamento, possibilitando uma melhor padronização dos trabalhos. Baseado no RECIST V.1.1.2. publicado pela medicina o Grupo de Oncologia Veterinária Cooperativa (VCOG) estabeleceu diretrizes para avaliação de pacientes com tumores sólidos na Medicina Veterinária. (NGUYEN, 2015).
As principais diretrizes propostas pelo RECIST na Medicina Veterinária são:
- Mensuração das lesões neoplásicas alvo na baseline que devem ser realizadas o mais próximo possível do início do tratamento priorizando sempre que o mesmo profissional tanto baseline, quanto das avaliações subsequentes que deverão ser realizadas com intervalos médios de 6 a 8 semanas;
- Método de avaliação: preconiza-se sempre manter a mesma técnica e método de avaliação sendo que, dentre os exames de imagem tomografia computadorizada é a melhor opção apesar de ser frequentemente pouco viável na Medicina Veterinária em vista de seus custos financeiros e de sucessivos procedimentos anestésicos;
- Avaliação da resposta tumoral através da mensuração das lesões alvo durante o acompanhamento do paciente;
- A sobrevivência livre de progressão, que é o período de tempo no qual o paciente permanece sem doença progressiva, tanto durante como após o tratamento, sendo este, um ponto acessível, antes dos dados referentes a sobrevida global;
- Relatório de resultados de resposta que, no caso de estudos de fase II, deve-se conter todos os pacientes contabilizados no relatório (NGUYEN, 2015).
Fase III
A fase III constitui um estudo controlado, randomizado e cego, que tem por objetivo comparar a eficácia da nova droga ao tratamento convencional instituído. Além disso, a fase III pode explorar os índices de resposta, bem como comparar os custos dos tratamentos e a qualidade de vida dos pacientes submetidos a ambos. Esses estudos não são comumente realizados na Oncologia Veterinária devido à sua extensão e custo, estando reservados aos grandes centros e cooperativas.
Fase IV
Os estudos de fase IV são instituídos após a concessão de licença ao uso da droga por órgão regulatório e tem por objetivo obter maiores informações sobre efeitos adversos, segurança, riscos e benefícios à longo prazo. Nessa fase, a nova droga é investigada com maior cautela do que nos estudos anteriores. Além disso, a fase IV pode avaliar a ação da droga em populações específicas, como jovens ou idosos, por exemplo, e em tipos tumorais diferentes daquele para o qual a droga obteve licença de uso.
A condução de estudos clínicos em Oncologia Veterinária com padrões rígidos de execução está sendo implementada há pouco tempo em todo o mundo. Essa implementação exige conhecimento na área de delineamento experimental e análise de dados para que se atinja o objetivo proposto. A maior parte dos protocolos rotineiramente utilizados na Medicina Veterinária foi estabelecido em dados retrospectivas ou de estudos em humanos. Os estudos clínicos na Medicina Veterinária têm trazido muitos avanços não somente para cães e gatos acometidos, mas também, para as pessoas com câncer e a toda comunidade científica.
Autores:
M.V. Ana Paula Constante
M.V. Gisele Paim
M.V Joice Toledo
M.V. Mirtes Martins
Prof. Dr. Lucas Campos Rodrigues
Referências:
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